ESG e Responsabilidade Civil de Controladores e Administradores de Sociedades Anônimas: Percepções Iniciais Sobre a Prática Do Greenwashing

Rafael de Freitas Valle Dresch Luiza Weschenfelder Weber

 

Sumário: 1. Introdução. 2. O Movimento ESG. 3. Greenwashing e a Responsabilização Civil. 4. Considerações finais.

 

1.  INTRODUÇÃO

 

Poderiam as companhias de diversos países, com escopos de atuação distintos, estarem diante de uma  situação na qual seus interesses convergem e suas atitudes reverberam além das barreiras geográficas? A resposta parece ser positiva. É o que se percebe com o movimento “ESG”, cuja sigla cunhada em 2005 pela United Nations Global Compact advém do termo em inglês Environmental, Social and Governance ou, em tradução para a língua portuguesa, “ASG”, referindo-se a Ambiental, Social e Governança, estando tais fatores integrados aos processos de tomada de decisão de companhias.

A CFA Institute define o significado de cada uma das letras que compõem o acrônimo “ESG” no qual a letra “E” representa a medida da conservação do mundo natural, que inclui os esforços relacionados às mudanças climáticas, emissões de gases de efeito estufa, poluição, biodiversidade, gestão de resíduos e afluentes, entre outros.; a letra “S”, por sua vez, corresponde à medida de consideração das pessoas e sua relação com a companhia, como satisfação do consumidor, engajamento dos funcionários, diversidade, relação com comunidades, proteção de dados, relações de trabalho etc.; por fim, a letra “G” diz respeito às medidas dos padrões de gestão de uma companhia que tratam da composição do conselho de administração, estrutura dos comitês de auditoria e fiscal, processos para evitar corrupção, ouvidoria etc.3

Com tal conceito em mente e, diante da percepção da crescente demanda por transparência corporativa alcançando todas as partes interessadas4, tais como acionistas, funcionários, fornecedores, clientes, colaboradores e a comunidade em geral, estes, quando em conjunto, denominados stakeholders, que emerge o questionamento societário de como gerar retorno financeiro à companhia ao mesmo tempo em que se busca reduzir os impactos negativos da atividade da companhia nas esferas ambientais e sociais, entregando um ambiente corporativo estruturado e benéfico aos stakeholders.

Os estímulos são crescentes para que as companhias sejam conduzidas a um caminho sustentável, este compreendido em políticas de proteção ambiental, mas não limitado a elas, também voltado para estruturas de governança reais e aplicáveis, as quais fazem com que as organizações estejam preparadas para gestão de crises, detenham políticas inclusivas, não discriminatórias e também meritocráticas, com visão às áreas de compliance, e a busca por investimentos de longo prazo, para citar alguns exemplos. No limite, para que as empresas que detêm na própria atividade grande impacto social, que estas demonstrem que suas riquezas são para um bem maior.

O presente estudo, diante de uma vertente de pesquisa de ordem qualitativa e exploratória, fazendo uso de artigos científicos e fontes documentais, foi desenvolvido para tratar da identificação do movimento ESG e seu impacto perante as sociedades anônimas brasileiras, mais especificamente no que diz respeito a prática de Greenwashing por controladores ou administradores frente ao instituto da responsabilidade civil.

Mesmo constituindo tema umbilicalmente vinculado e de extrema relevância, não é objetivo específico do presente estudo aprofundar a análise da responsabilidade civil das companhias pelos atos de seus controladores e administradores não conformes aos deveres decorrentes da implementação dos aspectos trazidos pelo movimento ESG perante os stakeholders em geral. O referido tema demanda aprofundamento que poderá ser obtido em estudos futuros dos autores do presente artigo.

 

2.  O MOVIMENTO ESG

 

O problema das companhias de como alcançar retorno financeiro ao mesmo tempo em que buscam a redução dos impactos negativos da atividade econômica em termos ambientais e sociais é desafiador e nunca despertou tanto interesse como atualmente.

Isto porque há evidências quanto aos stakeholders responderem negativamente às notícias que envolvam companhias desalinhadas aos propósitos do movimento ESG, sendo verificado que, no cenário em que as notícias alcançam funcionários, o meio ambiente e/ou comunidades, a resposta negativa é ainda mais latente, resultando em desinvestimentos e impactando a imagem da companhia.

Tal concepção demonstra uma mudança cultural importante, impulsionada por uma geração que busca um ambiente corporativo ético para investir e trabalhar, e que está atenta a como as alterações climáticas lhe afetam, demonstrando atuar em uma posição ativa para o alcance de tais propósitos. É o que se aufere, por exemplo, com a constituição do Principles for Responsible Investments (PRI), uma rede internacional de investidores, inclusive brasileiros, que, com o apoio das Nações Unidas, trabalha para fomentar que indivíduos e instituições incluam em sua tomada de decisão de investimento a análise de questões ambientais, sociais e de governança.

Quando analisado o tema em nível internacional, verifica-se que, embora ainda sob um modelo não normatizado7, autores como Michael Porter, Mark Kramer, Stuart L. Hart e Mark B. Milstein8 questionam o conceito defendido por Milton Friedman de que o objetivo exclusivo da empresa, sua responsabilidade social, é o de maximizar lucros para os seus shareholders. Tais autores defendem que a companhia deve considerar as demais partes interessadas no negócio quando realiza o planejamento de suas estratégias, sendo o retorno positivo aos investidores uma consequência.

Nesta mesma linha, as diretrizes propostas pelo modelo ESG são vistas por autores como Alex Edmans9, Hemlata Chelawat e Trivedi10 sob a ótica de tornarem-se fontes de oportunidade, geração de valor e vantagem competitiva. Ademais, é possível comprovar que, quando da análise11 entre o comprometimento corporativo em favor do meio ambiente e a geração de valor da empresa, as companhias que adotam padrões ESG obtêm resultado econômico alto e performam melhor através de seus funcionários e colaboradores, também atraindo maiores investidores no mercado pelos seus padrões de conduta, o que igualmente é constatado quando verifica-se que no início de 2020 o investimento sustentável global atingiu US$ 35,5 trilhões de dólares nos cinco maiores mercados globais (Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão), um aumento de 55% comparado com os últimos quatro anos.12

Como propôs Klaus Schwab quando de sua manifestação no Fórum Econômico Mundial, não se está buscando com o movimento ESG o abandono ao capitalismo, a quebra de mercados, o término da globalização ou o retardo dos avanços tecnológicos, mas a promoção de uma reforma cujo alcance transcenda aspectos financeiros, atingindo, sobretudo, elementos éticos que sejam capazes de garantir a sustentabilidade do sistema.13

Nesse compasso, é aferido em determinados segmentos econômicos14 que o modelo praticado pelas companhias visando a alta lucratividade e o ganho de mercado sem a devida análise do seu entorno social e da finitude de determinados bens, isto é, afastado da ótica o cuidado com os interesses sociais, tem gerado o efeito contrário ao esperado quando se pensa em expansão e geração de valor empresarial, conduzindo negócios de modo a ocasionar a queda da concorrência, resultando na outorga de salários reduzidos e a consequente baixa da produtividade.

Diante dos estudos em torno do tema15, este cenário pode ser oriundo de termos amplos vinculados ao que sugere o movimento ESG, com a falta de referenciais claros para a tomada de decisões por controladores e administradores, fazendo com que se instaurem dúvidas sobre as decisões de investimentos em prol de temas de interesses sociais, especialmente quanto ao seus impactos no retorno financeiro positivo das empresas, podendo o dever dos gestores ser questionado quando da ausência de ganho no curto prazo.

Em movimento contrário, poder-se-ia questionar se a atual posição das companhias deve, na forma urgente como propõe o movimento ESG, ser alterada para que passem a ser considerados também os interesses de seus stakeholders.16 Há aqueles que incitam que, ao considerar os interesses dos stakeholders, haverá́ um aumento significativo de custos à companhia, prejudicando a sua performance econômica, na medida em que deverão ser considerados os custos da falta de mecanismos legais para a tratativa de assuntos sensíveis, os quais passarão a ser decididos por executivos e gestores, levando à tomada de decisões discricionárias e a perda de oportunidades dado o receio da quebra do dever fiduciário ou abuso do direito a estes atribuído.

Diante deste contexto, é importante destacar que o ordenamento jurídico brasileiro não é indiferente à condução dos negócios de acordo com as práticas de sustentabilidade corporativa sob o viés do interesse social, consubstanciadas atualmente nas práticas ESG. No que tange às companhias objeto deste estudo, a Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976), já em 1976, expressamente reconheceu a função social da empresa em seu artigo 116, parágrafo único17 e artigo 15418, representando uma das primeiras tentativas de definir a empresa não apenas sob o seu aspecto econômico, mas também pelo seu aspecto institucional.

A crítica quanto às normativas, no entanto, se dá sobre a forma genérica com que estas foram redigidas pelo legislador, pois como apontam Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho19, não se faz suficiente o mero enunciado do princípio quando nos deparamos com um caso concreto que necessita de perfeita subsunção para a aplicabilidade da norma. Pondera-se que, ao mesmo tempo em que o legislador almejou assegurar o atendimento à função social quando da tomada de decisão empresarial20, este igualmente deixou lacunas quanto a sua delimitação, criando um cenário nebuloso sobre até qual ponto devem os controladores e administradores perquirir a função social tendo em vista o interesse da companhia e dos demais sócios no ganho financeiro de cada tomada de decisão.

No mesmo sentido, Rachel Sztajn21, ao analisar a função social sob a ótica da aplicação dos contratos, expressa ceticismo e, ao estender seu raciocínio para o âmbito das empresas, indica o princípio da função social da empresa como um fator gerador de oportunismos, o qual teria o efeito de diminuir a segurança jurídica para as relações de longo prazo, podendo, inclusive, ser alegado o desfazimento de certas condutas sob o argumento de que essas não atendem ao interesse social, pela ausência de conhecimento e diretrizes que indicariam em termos concretos o que dever-se-ia compreender como interesse social.

Por outro lado, não se pode deixar de indagar interpretação diversa, no sentido de o legislador ter propositalmente estabelecido a relativização da liberdade e autonomia privada empresarial, buscando alcançar um ponto de equilíbrio, fazendo com que não existisse uma fórmula fechada, para que fosse possível analisar o contexto e histórico social à época.

Diante da enigmática aplicação da função social da empresa, o movimento ESG com seus conceitos e parâmetros pode estar concretizando e trazendo maior objetividade às demandas ambientais, sociais e de governança para as empresas de forma geral e, mais especificamente, para as sociedades anônimas, seus controladores e administradores, mormente, quando as promessas do movimento ESG passam a ser utilizadas como um diferencial nessas empresas.

De todo o exposto, com a influência dos meios de comunicação, os quais possibilitam que acionistas e demais stakeholders detenham acesso a informação de forma surpreendentemente rápida, podendo conhecer o engajamento das companhias em seus diversos níveis, os aspectos ESG são traduzidos em um novo imperativo, tornando- se um desafio para aos controladores e administradores que se veem diante da tomada de decisões, na posição de executores do propósito das companhias.

 

  1. GREENWASHING E A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

 São executores do interesse social, perante as sociedades anônimas, o controlador e o administrador (aqueles, muitas vezes, ocupando a posição desses22), resguardados os deveres e obrigações específicos de cada posição que nos apresenta a legislação brasileira, mas sempre observando o que nos ensinou Adolf A. Berle e Gardiner C. Means e, no Brasil, Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho quanto às distintas formas de poder23, com a noção de dissociação entre controle e propriedade acionária.24

Com tal conceito em mente e, diante de todo o exposto em relação ao movimento ESG, tem-se que os controladores ou administradores serão, na maioria das oportunidades, responsáveis por delimitar as direções nas quais a companhia deverá seguir, e, portanto, a pressão para a tomada (ou não) das decisões envolvendo aspectos ambientais, sociais e de governança tende a recair sobre eles, pois o resultado da gestão societária produz efeito direto na esfera patrimonial dos acionistas.

Na linha do supramencionado, em observância aos deveres do controlador e do administrador, é perceptível que a tomada de decisão que envolve os temas do movimento ESG é complexa, envolve uma série de interesses e, na maioria das vezes envolve retornos futuros, no longo prazo, os quais são mais difíceis de serem apreciados pelos acionistas, especialmente diante de sua percepção ser diferida no tempo. Nesse sentido, quanto mais complexas as atividades realizadas pelo controlador ou administrador, mais discricionariedade há de ser dada, resultando em uma maior probabilidade de ‘custos de agência’.25

Sob as lentes da análise econômica do direito26, a maior transparência, aliada ao fornecimento de dados suficientemente completos à tomada da decisão, propicia a redução da assimetria de informações27, reduzindo os riscos (ou custos de transação) da tomada de decisão do controlador/administrador e justifica aos acionistas e demais stakeholders o que ensejou tal tomada de decisão. Em um cenário de critérios e aspectos informacionais objetivos sobre como ocorre a persecução do objeto social da companhia, ganham os gestores e ganham os acionistas, estes na certeza de que investem em sintonia aos seus propósitos e aqueles no atendimento dos deveres trazidos pela Lei das Sociedades Anônimas.

A linha tênue reside no aspecto de que, inundados face ao movimento ESG, controladores e administradores podem ser levados à construção de narrativas, inclusive estas reproduzidas em planos, políticas e relatórios apresentados à companhia, que não são aplicadas na realidade pela companhia.

Tal prática tem sido definida através do termo Greenwashing, isto é, a disseminação de informações equivocadas, dotadas de inverdades, omissões ou exageros, mesmo quando realizada de forma involuntária28. Na mesma linha, o Oxford Reference29 define que, em tradução livre, o termo é usado para descrever a atividade de ofertar uma imagem pública ambientalmente responsável para práticas que, neste segmento, não se sustentam.

Ademais, poder-se-ia estender a compreensão do tema como a transmissão de informações insuficientes ou de difícil compreensão, que propositalmente deixam de refletir o nível e/ou a extensão dedicados a avaliação de riscos ou oportunidades relacionados à sustentabilidade ou, até mesmo, discursos concedidos e assumidos publicamente e que não são cumpridos30, de acordo com os exemplos trazidos pela International Organization of Securities Commissions (IOSCO)31. Destaca-se, desta forma, que o termo não se refere somente para informações ambientais, mas também socioeconômicas, relacionadas a ideia do triple bottom line. 32

Tal prática (i.e. Greenwashing) que vem tomando forma com o movimento ESG, é particularmente importante, haja vista os reflexos que têm atingido algumas companhias. Neste caso, identificam-se algumas situações que se repetem em maior grau:

(i) há companhias que, diante da pressão externa (popular, acionária e de mercado), partem para a confecção de regulamentos, políticas e direcionaram esforços ao engajamento social, ambiental e de governança, para os fins de indicar a adesão ao movimento, mas que, na prática, não são cumpridas, não existindo, portanto, uma mudança cultural para a adesão efetiva de tais políticas e investimentos ESG33; e (ii) há companhias que, diante do impacto negativo que o próprio exercício de suas atividades gera ao meio em que estão inseridas (meio ambiente ou meio social), investem fortemente em causas filantrópicas, as quais são em maior medida divulgadas ao mercado e, neste caso, a filantropia serve para “legitimar a riqueza gerada, construída sobre danos sociais ou ambientais”.

Eis que se apresenta a importância da cautelosa análise da temática e do regime jurídico aplicável ao tema. Sendo os controladores e administradores executores do interesse social, suas iniciativas em desacordo com o discurso concedido aos acionistas e demais stakeholders podem trazer prejuízos econômicos substanciais a esses, rompendo com o dever de lealdade, este que é a manifestação concreta no campo do direito societário do princípio geral da boa-fé objetiva.

O conflito aqui analisado é delineado, portanto, face às implicações da dualidade do discurso e da prática corporativa adotada pelo controlador ou administrador, isto é, quando discursos são concedidos e assumidos publicamente, mas não são cumpridos, especialmente em razão dos deveres destes para com a companhia, acionistas e stakeholders.

Ao mesmo tempo, não se está querendo dizer com todo o exposto que os controladores e administradores abandonem a condição precípua da companhia, isto é, a busca pela geração de lucros aos seus acionistas, para passar a atender o interesse dos stakeholders de forma desmedida. Deve ser atribuída especial atenção ao mencionado, pois é necessário ter cuidado com a interpretação falha dos que pensam que a companhia deve ser, em maior medida, considerada como um meio para satisfação dos interesses da coletividade35. As premissas do ESG estão voltadas para a persecução do lucro aliada aos limites ambientais, sociais e econômicos. Com a junção destes requisitos pretende, o movimento ESG, alcançar a satisfação dos acionistas conjugada com a proteção dos interesses de empregados, consumidores e da coletividade em geral.

Mais do que isso, a premissa aqui é a da busca de resultado econômico para investidores como cerne da atividade empresarial. A grande questão que paira no ar é: quando a busca de resultado econômico pressupõe um respeito ambiental, social e de governança expressamente prometido, quais são as consequências do incumprimento destas promessas por parte daqueles que têm poder de deliberação e de execução na atividade empresarial?

Por conseguinte, dadas as premissas acima alinhadas, cabe indagar quais os critérios para a aferição de responsabilidade face à prática de Greenwashing? Neste sentido, a própria Lei das Sociedades Anônimas pode auxiliar em parte das respostas ao tema. Ao conduzir as decisões e o posicionamento da companhia perante terceiros frente a tais práticas de Greenwashing, são violadas as normas dispostas no parágrafo único do art. 11636 e arts. 15337 e 15538, respondendo o infrator que assim agiu “em prejuízo dos interesses da sociedade ou dos demais interesses que ele tem o dever de preservar”39

Nesse compasso, importa referir que tais dispositivos apresentam papel interpretativo e sistematizador das demais regras de responsabilidade, servindo como parâmetros para a identificação de abusos de direito40.

Pode-se constatar que, em última análise, por mais que muitos dos compromissos oriundos do movimento ESG apenas possam ser requeridos na hipótese de serem enquadrados em obrigações legais, fato é que um dos desdobramentos é a proibição do abuso do direito e da violação da boa-fé objetiva.

Retornando à base geral do dever de indenizar, a luz dos arts. 18741 e 92742 do Código Civil Brasileiro, a chave interpretativa para a análise da responsabilidade do controlador e/ou administrador diante de uma situação caracterizada como Greenwashing está no fato de que este, diante da posição de controle ou de gestão que ocupam na companhia, frustram a expectativa legítima dos acionistas e demais stakeholders que investiram e acreditaram no teor das decisões tomadas e políticas implementadas, as quais posteriormente não refletem a realidade fática dessa empresa, de modo que fere-se o princípio da boa-fé objetiva e, também, traduz-se em comportamento contraditório, vedado pelo venire contra factum proprium.

O abuso de direito e a boa-fé objetiva servem como critérios de imputação da responsabilidade civil, justamente, nas situações em que se imputam deveres aos agentes, objetivamente, no exercício de direitos. Aqueles que exercem direitos, devem fazê-lo de forma não abusiva e cooperativa. Nesse contexto, promessas na condução do controle ou na gestão de companhias ligadas aos critérios ESG podem ser feitas, mas, por consequência, vinculam as companhias que assim as apresentam ao mercado e os controladores e administradores que tomam as decisões nesse sentido. Assim, quando inverídicas, acarretam o incumprimento dos deveres que a lei lhes impõe em relação às promessas e expectativas legítimas geradas.

Aqui se está a falar de antijuridicidade e não de culpa, ou seja, falta aos deveres que acompanham o exercício de certos direitos. Exercer o poder de controle e a gestão das companhias são direitos que vêm acompanhados de deveres respectivos, dentre os quais é possível extrair o dever de cumprir as promessas realizadas, abstendo-se de promessas falsas ou vazias de conteúdo que criem expectativas legítimas aos acionistas e stakeholders.43

Não é demais destacar que a necessidade de cumprimento das promessas e programas alinhados com o ESG tem por base a relação fiduciária, centrada na confiança e nos deveres de diligência, lealdade e honestidade de controladores e administradores. Condutas que possam ser entendidas como abusivas e violadoras da boa-fé objetiva, rompem com a relação fiduciária e com os referidos deveres. Não se está aqui a defender o fim da autonomia e da discricionariedade de controladores e gestores, mas sim de respeito à relação fiduciária quando decidem apresentar a companhia como sustentável no aspecto ambiental e social. Assim, não há como escapar da definição de deveres abstratos, de cunho ético-normativo, condizentes com a confiança que lastreia a relação de fidúcia.44

Não se pode exigir resultados e metas definidos nos programas alinhados com o ESG que, naturalmente, estão sujeitos a riscos, mas podem ser exigidos programas robustos e podem ser sancionados os responsáveis pelos denominados sham programs.

Verifica-se, portanto, que em todos os casos, é possível compreender que a responsabilidade, conforme ensina Mafalda Miranda Barbosa, é a responsabilidade pelo todo social.46 Isto é, na persecução do interesse social, o qual envolve a busca pelo lucro ao mesmo tempo em que tutela a afetação dos stakeholders, a responsabilidade se adequa ao contexto e, a partir do momento em que o controlador ou administrador compromete- se institucionalmente com o exercício da atividade de modo sustentável e há rompimento das declarações – ou essas sequer são implementadas – é possível verificar a incidência da responsabilização civil pelos danos causados, havendo o abuso pelo controlador e a quebra dos padrões de conduta ou standards dos administradores, com o rompimento da relação de confiança mantida.

 

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório que as empresas estão inseridas em um ecossistema de constante evolução, sendo provocadas a acompanhar tais movimentos evolutivos sob pena de sofrerem reflexos econômicos ou reputacionais negativos. De igual forma, a tomada de decisão das empresas possui reflexos sociais, econômicos, ambientais e até mesmo políticos, como se buscou demonstrar ao longo da presente análise, repercutindo na sociedade como um todo, rompendo, portanto, a afetação única de seu objeto estatutário e adentrando para além de barreiras geográficas.

Diante do exposto, é possível constatar que o movimento ESG não busca ser um redutor da autonomia da vontade nas relações empresariais ou, ainda, uma iniciativa que almeja que interesses externos tomem posição hierárquica superior à persecução e entrega do lucro aos acionistas pela companhia. Em vez disso, a preocupação reside em se manter fiel ao discurso, em sintonia à função social da companhia, a qual, além de amparar o interesse social, reside no alcance do lucro pelo acionista. Assim, o que o movimento ESG propõe é que ambos os aspectos possam ser alcançados satisfatoriamente.

Em outras palavras, o que o movimento ESG propõe é que a companhia, com seus interesses representados pelo controlador e/ou administrador, busque desenvolver práticas sustentáveis, em seu sentido amplo, mas também permaneça coerente às contribuições definitivas que pode genuinamente alcançar, e não ações sociais superficiais, com a construção de um cenário fantasioso para vender a busca do ideal sustentável aos investidores e stakeholders que cada vez mais procuram alocar suas riquezas em organizações que estejam alinhadas com seus propósitos pessoais, sob pena de os controladores e administradores serem pessoalmente responsabilizados quando não cumprirem com os deveres decorrentes de suas promessas de adequação a padrões ambientais, sociais e de governança feitas ao mercado.

Como reflexão inicial, ainda sujeita a desenvolvimento e detalhamento, é possível concluir que as promessas de adequação são atrativas no mercado atual e, nesse contexto, geram expectativas legítimas a investidores e demais stakeholders. O não cumprimento dessas expectativas de forma deliberada, portanto, pode acarretar a responsabilidade civil de controladores e administradores por exercício abusivo de direitos e violação à boa-fé objetiva.

 

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