“Não existe vento favorável para o marinheiro que não sabe aonde ir.”
Lúcio Aneu Séneca
Você, certamente, já se deparou com a sigla ‘ESG’1, que representa, em síntese, fatores ambientais, sociais e de governança integrados aos processos de tomada de decisão em empresas. Partindo da premissa que a temática não se trata de uma novidade, é possível que algumas hipóteses tenham cruzado seu pensamento: (i) há uma dualidade (in)transponível entre o movimento ESG, voltado ao stakeholder capitalism2, e a persecução do lucro pelas empresas; e, (ii) o movimento ESG se propõe a reoxigenar o conceito de que responsabilidade social das empresas consiste apenas no aumentar seus lucros e distribui-los aos investidores.3
Questões complexas, mas que demandam a promoção de um debate fundamental que pode e merece ser confrontado através de lentes diversas. Neste sentido, em linha ao que a coluna vem abordando recentemente, a Escola do New Private Law4 (NPL) poderia contribuir para o alcance de uma maior compreensão do fenômeno e para a busca das respostas a questões complexas contemporâneas que envolvem o movimento ESG.
De início, não parece existir uma contraposição entre os objetivos do movimento ESG e a persecução do lucro pelas empresas. Ao mesmo tempo em que é possível reafirmar que a função principal da empresa segue sendo a persecução ao lucro e sua distribuição, é possível defender a sua vinculação a parâmetros e ponderações que consideram o impacto da atividade empresarial no seu entorno – desde os acionistas (e o retorno do investimento no longo prazo, aliado à sua proteção), passando pelos fornecedores (e a margem recebida pelo produto), pela finitude de recursos (a matéria prima escassa e a poluição do meio), até alcançar o consumidor final (a escolha do mercado que se quer consumir) e a sociedade em geral (não consumidores afetados pela atividade exercida pela empresa).
O importante é que a empresa possa compreender suas limitações e, por vezes, a impossibilidade de atingir todos os aspectos5 contidos no acrônimo ESG, inclusive diante das particularidades da própria atividade econômica exercida. Contudo, tal situação não pode constituir um entrave para a conformação de uma atividade pautada pela ética, inclusiva e sustentável (no sentido amplo da expressão).
Tem sido comprovado que a atuação da empresa nessa formatação sustentável, não necessariamente implica em gastos não convertidos em receitas, mas tornam-se fontes de oportunidade, geração de valor, vantagem competitiva6 e proteção quanto aos riscos de desinvestimento e descrédito social. Quanto a esse último aspecto, inclusive, aferindo que o chamado “risco social” pode ser muito mais destrutivo em termos de valor da empresa do que a própria violação da legislação em geral7.
Existindo impacto real e positivo na adoção de alguns aspectos do ESG, a empresa deve explorá-los8 e, como consequência, deve poder se valer das oportunidades geradas por essa postura no mercado, diversificando investimentos e possibilitando a investidores/consumidores a escolha de contratação de serviços e compra de produtos alinhados aos seus interesses de consumo e afinidades.
Dentre outras medidas voltadas aos objetivos do ESG, é interessante destacar: (i) investimentos em proteção de dados, políticas igualitárias étnicas e de gênero, o agir ético, o escrutínio da cadeia de fornecedores e o emprego do compliance (poder-se-ia dizer, inclusive, básicas e decorrentes de lei)9 e: (ii) medidas que viabilizem a capitalização direta da empresa ao mesmo tempo em que contribuem para um mercado mais sustentável, como é o caso do mercado de carbono e green bonds.10
O ESG pode ser compreendido como um movimento corporativo ou um movimento social, até mesmo ambos, fato é que a pauta está ativa (e movimentando expressivo capital) e não pode ser ignorada. Os ventos mudaram de direção e não atender aos ditames propostos pelo próprio mercado em relação ao movimento ESG pode fazer com que o custo do capital das empresas aumente para lidar com riscos regulatórios11 avistados no horizonte. Isto é, ao passo que a atividade legislativa ganha força (no país e ao redor do globo), como já se percebe no âmbito infralegal, empresas que se mantêm distantes e alheias aos objetivos do movimento ESG tendem a sofrer com impactos mais significativos em relação aos riscos dos negócios contemporâneos. A desídia em relação aos aspectos ambientais, sociais e de governança não é mais tolerada nos negócios como no passado.
Nesse compasso, o Direito, como disciplina de condutas e relações sociais, acaba por acompanhar os novos ventos, seja através da positivação de deveres jurídicos condizentes com os objetivos do ESG, seja através da formatação de negócios que considerem, também, esses objetivos.
O New Private Law, por sua vez, ao se caracterizar como um movimento jurídico que comporta uma análise centrada nos aspectos formais, dogmáticos, conceituais, característicos de uma abordagem interna do direito privado, mas aberta às contribuições externas – sejam do direito público ou de outras áreas do conhecimento -, se apresenta como uma adequada abordagem para o estudo do movimento ESG, pois esse movimento apresenta uma pauta complexa que demanda essa consideração aos aspectos econômicos, sociais, ambientais, comportamentais.
Em que pese a legislação brasileira apresentar algumas vias de acesso para dirimir a problemática de ser, ou não, o movimento ESG mandatório às empresas, a função social da empresa12 e a imposição de deveres fiduciários13 podem servir de critério para a disciplina de questões relativas à atuação lícita de empresas e administradores.
Diante disso, para auxiliar o Direito a encontrar as respostas, ao lado da dogmática, a fim de reduzir a assimetria informacional dos agentes envolvidos, isto é, equilibrando o conhecimento das partes, faz-se importante alcançar os ensinamentos que outras áreas do conhecimento oferecem, tais como a economia, a contabilidade, a administração e, até mesmo, a neurociência. A importância de se analisar os impactos de cada decisão à sociedade, os precedentes gerados e o motivo pelo qual as empresas e a sociedade agem frente ao tema pode servir de tônico em diferentes aspectos, seja o legislativo, seja o político, podendo esse último explorar, através de normas federais, estaduais ou municipais, incentivos financeiros às empresas para que gerem maior impacto sustentável. Assim, ganham a empresa, investidores, stakeholders e comunidade como um todo.
Fazendo uso de uma análise dogmática, formalista, mas igualmente considerando a racionalidade funcionalista econômica, social, ambiental, comportamental, será possível encontrar as ferramentas para a construção das respostas jurídicas que o tema demanda? Parece que os ventos correm nessa direção. Ajustem as velas!
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1 A sigla significa: Environmental, Social e Governance ou Ambiental, Social e Governança. A CFA Institute define o significado de cada uma das letras que compõem o acrônimo “ESG” no qual a letra “E” representa a medida da conservação do mundo natural; a letra “S”, por sua vez, corresponde a` medida de consideração das pessoas e sua relação com a companhia; por fim, a letra “G” diz respeito às medidas dos padrões de gestão de uma companhia.
2 Em 2019, a Business Roundtable (BRT), anunciou a revisão do conceito de propósito corporativo, manifestando que seus líderes devem atuar para conduzir suas companhias visando o benefício de todos os stakeholders e, no mesmo ano, durante a realização do Fórum Econômico Mundial, foi exposto ao público um manifesto que incentivava fortemente as companhias de todo o globo a alterarem o modelo tradicional do que se denomina por shareholder capitalism, pautado na esfera privada de sócios e acionistas visando a` maximização dos seus próprios lucros e a satisfação exclusiva destes, para o modelo do stakeholder capitalism, o qual caracteriza-se quando a companhia deixa de ser veículo exclusivo para os seus shareholders e seus interesses individuais, passando a atuação da empresa a importar também sobre seus diversos empregados, colaboradores, fornecedores, investidores, consumidores e perante a comunidade em geral. BUSINESS ROUNDTABLE. Statement on the Purpose of a Corporation. 19 ago. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 21 mar. 2021.
3 Referência realizada ao economista americano Milton Friedman, conhecido por seu ensaio publicado no jornal The New York Times, intitulado “The Social Responsability of Business is to Increase Its Profits”.
4 Abordagem do direito privado, oriunda da common law, que busca superar a dualidade e congregar elementos formais e funcionais. Recomendamos, para contato com o tema, a leitura do texto “New Private Law”, escrito por Rafael de Freitas Valle Dresch e publicado na coluna “Lições Filosóficas do Direito Privado” no portal Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 23 set. 2021. Da mesma forma, recomenda-se: NICE, Julie A. The New Private Law: an introduction. HeinOnline — 73 Denv. U. L. Rev. 993 1995-1996, p. 993.
5 Aliado a isso, caso os planos e políticas da companhia não sejam aplicados na prática, há caracterização de greenwashing, isto é, em resumo, a disseminação de informações equivocadas, omissões, práticas que não se sustentam e/ou discursos não cumpridos relacionados à sustentabilidade.
6 Há estudos que demonstram a relação entre o comprometimento corporativo em favor do meio ambiente e a geração de valor da empresa, concluindo que companhias que adotam padrões ESG obtêm resultado econômico alto e performam melhor através de seus funcionários e colaboradores, também atraindo maiores investidores no mercado pelos seus padrões de conduta. DOWELL, Glen; HART, Stuart; YEUNG, Bernard. Do corporate global environmental standards create or destroy market value? Management Science, v. 46, n. 8, p. 1059-1074, ago. 2000. Disponível aqui. Acesso em: 21 out. 2021.
7 Autores como Miazad e Gadinis aprofundam o tema igualmente propondo que, enquanto técnicas de compliance lidam com a violação das leis, os temas envolvendo sustentabilidade encorajam a intervenção em níveis e em situações que a lei não poderia sozinha alcançar, fazendo com que controladores e administradores sejam pressionados a tomarem atitudes sob o risco de obterem seus deveres fiduciários questionados. Vide em: GADINIS, Stavros; MIAZAD, Amelia. Corporate Law and Social Risk. Vanderbilt Law Review, 06 Fev. 2020. University of California, Berkeley – School of Law. Disponível aqui.
8 Sobre o tema, recomenda-se: LAZZARINI, Sérgio. The Right Strategy: benchmarks for just corporate action. Abril, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 09 mar 2022.
9 No Brasil, em linha com o que propõe o movimento ESG, é possível traçar o paralelo de que estar em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n 13.709/18), respeitar a Lei de Prevenção à Fraude e à Lavagem de Dinheiro (Lei n 9.613), junto à Lei da Empresa Limpa (Lei n 12.846/13), são aspectos de governança que contribuem na sustentabilidade corporativa e impactam no custo do capital, como se busca refletir no presente texto.
10 Constatou-se que no início de 2020 o investimento sustentável global atingiu US$ 35,5 trilhões de dólares nos cinco maiores mercados globais (Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão), um aumento de 55% comparado com os últimos quatro anos. Disponível aqui.
11 Recentemente, em 11 de abril de 2022, durante o Brazil Legal Symposium at Harvard Law School, o professor Holger Spamann, dividindo painel com Carlos Portugal Gouvêa, adota uma postura cética ao movimento ESG, posicionando-se no sentido de ser o ESG, na verdade, a antecipação das grandes empresas ao risco regulatório sobre o capital, haja vista o anseio de não perder valor com a não conformidade a regras ou a perda de investimentos de terceiros por não estarem adeptas às diretrizes ESG.
12 Conforme artigo 116, parágrafo único, da Lei das Sociedades Anônimas: “O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”. E, conforme artigo 154 da Lei das Sociedades Anônimas: “O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”. (BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Brasília, DF, 1976. Disponível aqui.)
13 Por exemplo: Arts. 153 ao 157 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. (BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Brasília, DF, 1976. Disponível aqui).
Disponível em: Migalhas