Para além da deontologia e do funcionalismo pode haver vida no direito privado? Nos últimos dois séculos, aproximadamente, as racionalidades deontológicas (formalistas) ou consequencialistas (funcionalistas) têm disputado a essência do direito privado e de seus institutos. Com diversos nomes, dogmáticos, solidaristas ou analistas econômicos buscam explicar o direito privado em versões conflitantes e antagônicas.
Contudo, na virada e início do novo milênio, surge na common law, principalmente, uma nova abordagem do direito privado que quer superar a dualidade e congregar elementos formais e funcionais. A Escola do New Private Law (NPL), mais especificamente, quer um direito privado mais condizente com o direito que é praticado no século XXI. O sucesso desse imenso desafio, entretanto, não é de fácil alcance. Será possível avançar?
O movimento do New Private Law surge no meio acadêmico americano a partir da reflexão sobre a nova realidade da aplicação do direito privado naquele país. No final do século XX, no Simpósio Anual da Faculdade de Direito da Universidade de Denver, os diversos professores escolheram como tema comum de suas pesquisas a crescente preferência da ordem privada sobre os arranjos públicos. O fenômeno constatado foi o da privatização de instituições públicas americanas: especialmente, escolas e prisões. Soma-se, ainda, o incremento de sistemas privados de resolução de conflitos, técnicas de preservação ambiental de ordem privada, contratualização das estruturas familiares e de serviços públicos em diferentes formatos. Nesse contexto, a conclusão dos acadêmicos no citado Simpósio foi de que o ponto comum das diversas pesquisas era um novo fenômeno, o da privatização do Direito. A privatização das relações jurídicas pode ser vista como um novo movimento jurídico? Um novo direito privado? Se sim, quais suas características? Como situar essa constatação no discurso jurídico?1
Dos debates no referido Simpósio surge então a expressão New Private Law para designar o novo fenômeno. Algumas das percepções iniciais sobre suas características acabaram sendo destacadas, quais sejam: i) desregulação; ii) descentralização; iii) privatização; iv) contratualização; v) reconhecimento da distinção entre os domínios público e privado; vi) preferência pela ordem privada – do mercado – em relação a dos gestores públicos e; vii) tolerância moderada em relação às desigualdades materiais decorrentes dessa ordem privada.2
No momento de surgimento do movimento NPL as constatações sobre o discurso jurídico correspondente foram as seguintes: i) valores vinculados à direita no debate político; ii) vínculo com o formalismo, mas, também, com a análise econômica do direito; iii) individualismo; iv) pluralismo e; v) um ideal liberal. Contudo, apesar de algumas semelhanças, o New Private Law seria diferente do formalismo pela rejeição à devoção absoluta a conceitos e categorias. Quanto à análise econômica do direito, mesmo valorizando a ordem do mercado, a preocupação central seria menos com eficiência e mais com a preponderância da esfera privada. Há uma visão liberal pela primazia da ordem privada, normativista, pragmática e centrada na privatização dos arranjos jurídicos.3
Ao longo do debate sobre o New Private Law se desenvolve a análise de outros elementos que se revelam centrais na compreensão da nova visão sobre o direito privado. A primeira e mais relevante, o desejo de desenvolver uma teoria própria do direito privado sem que seja necessário reduzir o direito privado a uma disciplina externa como a economia ou a sociologia. A centralidade de uma teoria própria do direito privado não significa, entretanto, o desprezo pelo ponto de vista externo e nem pelas contribuições de outras áreas do conhecimento. Há uma compreensão pela primazia da abordagem interna, mas uma abertura para as abordagens externas que contribuam para a racionalidade interna, sobretudo, através da constatação de elementos finalísticos externos que reforcem os fins próprios do direito privado. A questão é saber como a análise econômica do direito, o realismo jurídico ou as formas de funcionalismo podem contribuir para a análise e reforço dos conceitos jurídicos próprios do direito privado e não seu abandono e descaracterização.4
O segundo tema desenvolvido ao longo da análise do NPL busca levar os conceitos de direito privado e suas categorias a sério. Nesta linha, compreende direitos, deveres, poderes, responsabilidades e remédios jurídicos como conceitos distintos que se unem, em grande medida, de maneira coerente. O NPL parte da premissa de que as distinções entre categorias de direito privado (contrato, propriedade, ato ilícito, enriquecimento sem causa, etc.), embora sujeitas à crítica, são inteligíveis e devem ser preservadas, inclusive, por exigências pragmáticas.5
Ademais, o NPL diverge das análises em geral da common law que compreendem a teoria do direito privado concentrada nos ilícitos, contratos, propriedade e enriquecimento sem causa, enquanto outros campos recebem pouca atenção. O NPL está focado numa visão mais abrangente do direito privado que alcança seus temas de fronteira como o direito do trabalho, o direito do consumidor, o direito da propriedade intelectual, entre outros. A característica da visão mais abrangente parece estar vinculada à outra que, provavelmente, marca o NPL que é a da aproximação do direito privado da common law com a civil law. No direito continental os conceitos são prioritários. Na tradição do direito consuetudinária anglo-saxã, em regra, a análise é, inicialmente, casuística, pelo raciocínio por casos e exemplos, buscando similitudes e distinções cruciais entre eles para chegar a conclusões sobre os resultados corretos. O raciocínio conceitual vem depois do indutivo – problemático – para dar sentido a esses resultados da investigação, inicialmente, tópica. Assim, o jurista, na tradição continental, é disciplinado para a interpretação de textos de lei como um ponto de partida de sua análise, já um jurista na common law, por outro lado, tende a pensar na lei escrita como uma interferência na rede perfeita do Direito dos precedentes.6
A aproximação com o direito continental pelo NPL decorre também da questão sobre a unidade do direito privado. Se a unidade deve ser pensada a partir de um princípio, como o da justiça corretiva, o direito privado da tradição continental estaria equivocado, pois temas como direito de família e direito das sucessões não poderiam ser compreendidos como parte do direito privado. Para o direito continental, a concepção de direito privado é diferente, sendo direito privado todo o direito que se aplica à relação entre os cidadãos, podendo decorrer de uma série de princípios, inclusive, o da justiça corretiva. A evolução do NPL pretende, nesse sentido, uma compreensão do direito privado nos termos mais próximos aos da tradição do civil law.7
Apresentadas algumas características do New Private Law, resta evidente que se trata de recente movimento que merece todo respeito e atenção. São vários os temas cruciais apresentados para o entendimento do direito privado contemporâneo. É possível discordar ou criticar as posições desses novos juristas, o que não é possível é ficar acastelado defendendo velhos hábitos dogmáticos ou funcionalistas sem a devida reflexão.
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1 NICE, Julie A. The New Private Law: un introduction. HeinOnline — 73 Denv. U. L. Rev. 993 1995-1996., p. 993.
2 Idem. Ibidem. p. 994.
3 Idem. Ibidem. p. 994/996.
4 GOLD. Andrew S. Internal and External Perspectives: On Methodology in the New Private Law Electronic copy available at.
5 GOLD, Andrew S. et al. (Ed.). Introduction. The Oxford Handbook of the New Private Law. Oxford University Press, USA, 2020.
6 SMITH, Lionel. Civil and Common Law. available at, p. 6
7 Idem. Ibidem. p. 8.
Disponível em: Migalhas