Um tributo a Paulo de Tarso Sanseverino: magistrado, professor e jurista

Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.
Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor,
justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim,
mas também a todos os que amarem a sua vinda.

Paulo de Tarso, Bíblia, 2 Timóteo 4:7-8.

Os autores da coluna Migalhas de Responsabilidade Civil me concederam a honra de escrever o artigo comemorativo dos três anos da coluna e o desafio de homenagear o meu querido professor, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Com grande pesar lamentamos o falecimento do Ministro Sanseverino, ocorrido no dia 8 de abril de 2023. De uma carreira exemplar no Poder Judiciário brasileiro, Sanseverino foi um destacado magistrado, excelente professor, competente jurista e, mais do que tudo, um grande ser humano.

Paulo de Tarso nasceu em 16 de junho de 1959 em Porto Alegre, teve sua formação Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em 1983. Tornou-se mestre (2000) e doutor (2007) em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No primeiro ano de formado, Sanseverino passou no concurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) em 1º lugar e, depois, no concurso para magistratura estadual que lhe proporcionou a atuação como juiz de direito, a partir de 1986 em diversas comarcas gaúchas. Exerceu, ainda, a magistratura como juiz eleitoral entre 1998 e 1999. Em 1999 foi promovido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), atuando como desembargador até 2010, quando foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No STJ foi um exímio magistrado nos colegiados de direito privado, se destacando como uma referência no país para os temas contratuais, de reponsabilidade civil, formação de precedentes, entre outros. Foi relator de inúmeros Leading cases, dos quais se destacam:

a) Em 2011, o Ministro Sanseverino já mostra a força de sua atuação no STJ ao relatar e votar pela aplicação do método bifásico da mensuração das indenizações por dano moral (REsp 1.152.541). No caso, o Ministro confirma aplicação de sua tese de doutorado, unindo jurisdição e pesquisa acadêmica, para exarar o voto condutor e determinar a elevação do valor da indenização por dano moral considerando as duas etapas que devem ser percorridas no arbitramento de indenizações por danos morais. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em precedentes para casos similares. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias específicas do caso para definição do valor da indenização com fundamento na determinação de arbitramento equitativo pelo juiz em interpretação analógica do da norma insculpida no art. 953 do Código Civil.

b) Em 2012, no Recurso Especial nº 1.192.678-PR, o Ministro Sanseverino lidera o julgado pela aplicação da “teoria dos atos próprios” com base no princípio da boa-fé objetiva e nos institutos do “tu quoque” e “venire contra factum proprium” para reconhecer a validade de assinatura digitalizada aposta pelo próprio emitente em título de crédito.

c) Sanseverino relatou o acórdão que julgou sistema credit scoring (Tema 710). Após realizar audiência pública no STJ, o Ministro Sanseverino votou pela validade do sistema desde que as instituições bancárias respeitem os direitos dos consumidores sob pena de responsabilização pelos danos causados.

d) O Ministro Sanseverino relatou, em 2015, o acórdão do Tema Repetitivo 898, que julgou a controvérsia sobre a atualização monetária nas indenizações por morte ou invalidez do seguro DPVAT. Após mais uma audiência pública, o Ministro votou e foi seguido, unanimemente, pela atualização monetária da indenização do seguro DPVAT desde a data do evento danoso.

e) Relatou o acórdão que definiu a legitimidade da Telebras para responder a processos sobre complementação de ações (Tema 910).

f) O Ministro Sanseverino, também, liderou o precedente que definiu o caráter abusivo do ressarcimento, pelo consumidor, da comissão do correspondente bancário (Tema 958).

g) Cabe citar, ainda, seu voto na decisão sobre a plena eficácia da sentença arbitral estrangeira no Brasil após a homologação (REsp 1.203.430).

h) Outra decisão de grande repercussão foi a da definição da abusividade da negativa de cobertura de despesas com cirurgia de gastroplastia necessária à sobrevivência do paciente nos contratos de planos de saúde (REsp 1.249.701).

i) Recentemente, o Ministro Sanseverino relatou e conduziu o julgado pelo reconhecimento de que o “Direito da Concorrência e Direito do Consumidor apresentam relação simbiótica, pois, em termos gerais, quanto maior a concorrência, maior tende a ser o bem-estar do consumidor e que, quanto maior a proteção do consumidor, mais justa e leal tende a ser a concorrência”. Contudo, apesar dessa relação essencial entre proteção à livre-concorrência e proteção ao consumidor, não é possível à concorrente exigir a inversão do ônus da prova e impor ao concorrente a comprovação de afirmações publicitárias como “o melhor hamburguer do mundo” sob pena de abuso de direito e violação da própria livre-concorrência (REsp 1.866.232).1

O ministro Sanseverino, além de excelente magistrado, foi um grande professor de Direito na graduação, mestrado e doutorado, exercendo o nobre ofício na PUC-RS, no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) entre outras renomadas instituições de ensino.

A atividade como professor foi coroada com uma relevante carreira como escritor e pesquisador jurídico. O jurista Sanseverino escreveu diversas obras que marcaram o direito privado brasileiro, especialmente, sobre o direito da responsabilidade civil e o direito dos contratos. Dentre os principais escritos se destacam:

a) “Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil”2: Na obra, fruto de seu doutorado, o doutrinador Sanseverino destaca que o princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que não se revela viável, entretanto, em várias ocasiões. Diante da complexidade dos diversos elementos da responsabilidade civil, Sanseverino buscou defender a aplicação do princípio da reparação integral nos casos de danos extrapatrimoniais de forma mitigada para que se evite distorções como o enriquecimento injustificado. A teoria da diferença (aplicável aos danos patrimoniais) deve ser superada pela teoria do interesse, permitindo a ponderação do interesse jurídico do lesado. O exame deve ser feito em duas fases (método bifásico): primeiro, pela análise dos precedentes jurisprudenciais similares e, posteriormente, num segundo momento, pela valoração das circunstâncias especiais do caso. Como acima referido no julgamento do REsp 1.152.541, o Professor Sanseverino pode liderar a consolidação de sua tese nos tribunais pátrios.

b) “Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo)”3: obra na qual Sanseverino comenta os principais dispositivos do Código Civil em relação aos contratos nominados, com especial destaque para o mútuo e as formas de responsabilidade contratual.

c) “Responsabilidade civil no Código Do Consumidor e a defesa do fornecedor”4: Sanseverino examina a responsabilidade por acidentes de consumo e os seus pressupostos (defeito, dano, nexo causal e nexo de imputação). Defende a compreensão do defeito com base na teoria do risco criado e a sua compatibilidade com as excludentes de responsabilidade como a culpa concorrente da vítima, o caso fortuito e a força maior.

Por tudo referido e muito além, o Ministro Sanseverino foi uma das estrelas da escola gaúcha e brasileira de direito privado, herdeiro e/ou parceiro intelectual de grandes juristas como Clóvis do Couto e Silva, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Judith Martins-Costa, Claudia Lima Marques, citando apenas alguns.

Como advogado, tive muitas demandas julgadas pelo magistrado Sanseverino, ganhei e perdi, mas sempre fui tratado de forma justa. Contudo, foi nos bancos universitários que aprendi a admirar ainda mais o professor e acadêmico. Fui aluno do Professor Sanseverino na disciplina de Contratos no ano 1996 na PUC-RS e, pelo seu exemplo, comecei a me interessar pelo direito privado, o direito dos contratos e a responsabilidade civil. Desde então, passei a ter o Professor Sanseverino como referência e lhe segui no mestrado da UFRGS (minha dissertação chega a abordar o mesmo tema da dele). Posteriormente, tive a sorte de ser seu colega como docente na PUC-RS e receber suas turmas de contratos quando da sua nomeação para o STJ e mudança para Brasília.

Digo isso, pois tenho certeza que, assim como para mim, o Professor Sanseverino foi para muitos um exemplo do exercício dos diversos ofícios jurídicos na busca do bem e da justiça. Sanseverino foi a prova de que não há grande magistrado, jurista ou professor, sem um grande ser humano. Assim, deixo aqui meu testemunho de que, como seu homônimo citado no início deste breve depoimento, Paulo de Tarso combateu o bom combate, acabou a carreira, guardou a fé e, assim, certamente, a coroa da justiça, que ele tanto defendeu, lhe foi, merecidamente, dada.

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1 Informações em parte obtidas no site do STJ, em notícia sobre o falecimento do Ministro Sanseverino intitulada “A despedida prematura de Paulo de Tarso Sanseverino”: Acesso aqui.

2 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.

3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo). Editora Revista dos Tribunais, 2006.

4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor. são Paulo: saraiva, 2010.

Disponível em: Migalhas